Passagens
por Fée
Curadoria: Marc Pottier
Maria Fernanda Paes de Barros depois da primeira versão da sua obra “Passagem” em 2021 apresentada no projeto Circular-Arte na Praça Adolpho Bloch em São Paulo, mostra hoje na Nós Galeria a sua primeira série de obras primas, “Passagens”. Decididamente contemporânea, ela vai direto ao ponto. Através de uma estética poética inspirada pela cultura indígena, ela traz o espectador de volta às origens do Brasil, questiona a passagem do tempo e nossas energias inconscientes.
A passagem do tempo e a herança indígena
As obras de arte dignas desse nome nas artes plásticas, em geral, nascem sempre em um momento preciso. Elas vêm de longe, após um longo exercício que sucede o acúmulo de rascunhos, ou um longo e silencioso amadurecimento feito de observação, pensamento e experiência. Nesse caso, a obra nasce já pronta, fruto de um caminho longamente percorido. Não importa, então, a carreira, o número de obras precedentes, pois o fruto está maduro e a obra nasce quase a despeito de seu autor.
Com “Passagens”, a primeira exposição individual da Maria Fernanda Paes de Barros na Nós Galeria, a artista oferece aos espectadores anos de reflexão. São obras que se enquadram perfeitamente no século XXI. Elas não poderiam ter sido vistas ou compreendidas antes. Derivada da Land art, sem dúvida … talvez sociológica, seu conceito nos faz olhar para o passar do tempo, mas também para a herança indígena. A artista utiliza materiais comuns que evocam “O louvor do solo”, as Matériologies ou as Texturologies do grande teórico francês da Art Brut, Jean Dubuffet (1901-1985).
“Passagem”
o nascimento da primeira obra
A primeira versão de ‘Passagem’ mostrada na 4ª versão do projeto Circular-Arte na Praça Adolpho Bloch em 2021 tinha sua estrutura em madeira jequitibá maciça, esculpida em formas orgânicas, intercalando painéis feitos com uma mistura de barro, numa composição que abre espaço para uma “janela”, onde um punhado de sementes de Tento, conhecidas por Pau Brasil, nos coloca em contato com a essência da vida. Na Nós Galeria, são versões de tamanhos menores com uma variedade de propostas, inclusive composições com ferramentas.
“A arte verdadeira está sempre onde você não espera”,
Dubuffet
As obras apresentam uma superfície com asperezas onde o gesto da artista pode ser adivinhado: o material que ela aplica em camadas grossas é amplamente espalhado, retrabalhado, e até esculpido, dando, entre os elementos estruturais em madeira um relevo para a representação, como uma espécie de inventário de texturas.
Já não há mais marcos nestes fragmentos, que parecem ter sido trazidos de campos sem limites, de um todo contínuo. As obras dão uma visão diferenciada de pedaços de solo, de um caminho, de uma estrada, como peças carregadas de história e memória. Esses pedaços de terra acastanhados parecem conter toda a substância nutritiva do universo, sem recorrer à presença da figura, com ambiguidade entre realidade e abstração. Não se trata então de focar o nosso olhar no que nos escapa?
“Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão a que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos.”
Fernando Pessoa
O título justifica-se por causa destas “janelas”, destas aberturas que a artista deixou em sua composição da terra. “Passagem” vem de “passo” (passus em latim). Designa um deslocamento, uma marcha em direção a outro lugar, um passo, um processo de transformação ocorrendo. É aqui que ocorre a mudança, e ela nos faz ver e pensar. Esse é o convite de Maria-Fernanda. Como Deleuze (1925-1995), ela concebe o espaço como um lugar de passagem, como um plano de imanência atravessado pela vida.
Nesse trabalho, ela incorpora a lógica da transversalidade para torná-lo dinâmico. A passagem, também como ideia de transformação, de metamorfose, condição de todo o progresso… um título que dificilmente será definido em pormenores.
Sementes de Pau-brasil como ser vivo em potencial
Maria-Fernanda, porém, obstruiu parcialmente as aberturas das obras com sementes de Tento, que os Pataxós costumam utilizar. Por causa da sua cor vermelha, costumam as chamar de Pau-brasil, responsável por despertar o interesse dos ditos descobridores do Brasil. Ela completa: “As sementes são símbolo de todas as capacidades e possibilidades, da abundância da vida. Elas alteram em si mesmas o futuro. Imagine em um punhado de sementes quanta vida existe! A ação de semear representa a esperança de um fruto que ainda não colhemos. Cada semente é um ser vivo em potencial, que aguarda apenas o momento de expandir-se. Para gerar vida a semente precisa da terra.”
Essas novas composições da Maria Fernanda Paes de Barros, com madeira peroba rosa de demolição, vidro cristal e sementes de tento, algumas vezes com ferramentas ou tomada e fios de eletricidade, tem títulos muitos poéticos traduzindo a filosofia da artista tal como ‘Essência – alma nua’, ‘Interlocução – diálogos sem sons’…
O BALANÇO DA VIDA
Além da série “Passagens” Maria Fernanda Paesde Barros, com as suas amigas Kuyawalu Aweti e Kulikyrda Mehinaku do território Indígena Xingu mostra vários “Balanços Kaupüna”, com fios de buriti e de algodão coloridos unido a à madeira maciça piranheira, decorada com grafismos tradicionais pintados com carvão e resina de pé de Ingá.
Se encontram pela primeira vez o trabalho artesanal das mulheres, que colhem, limpam e preparam a palha de buriti para fazer o fio com o qual tecem suas tradicionais redes, e o dos homens, que adentram a floresta para encontrar árvores de onde tiram a madeira para criar bancos zoomorfos enfeitados com grafismos pintados à base de carvão e urucum. Totalmente executado na Aldeia Kaupüna nasce uma peça que une o desenho da Maria Fernanda à tradição artesanal indígena e vai mais além, ele marca a história da etnia, unindo homens e mulheres e mostrando toda a beleza e potencial que podem ser alcançados quando eles trabalham juntos.
O Balanço na arte é um tema recorrente. Permite composições ousadas porque o ‘objeto’ é muito gráfico e permite explorar novos pontos de vista.
Instalado em uma paisagem ou como é o caso na Nos Galeria, o balanço agrega elementos gráficos que muitas vezes estão na origem da composição de uma pintura. As cordas do balanço definem eixos oblíquos ou verticais operados pelos artistas. Na famosa pintura de Fragonard (1732- 1806), o brincar torna-se uma oportunidade para refletir sobre a noção de ponto de vista.
Mas a este respeito a pintura de Fragonard pode ser interpretada como uma alegoria do fim do Antigo Regime. A nobreza da corte cultivou o humor e o entretenimento leve sem perceber que a burguesia financeira e comercial, já havia conquistado o poder econômico que construirá o futuro. Situavase acima da aristocracia que mantinha apenas a aparência de poder politico, ignorando sua queda.
Será que Maria Fernanda e os Mehinaku nos mandam um recado sobre os tempos onde temos que cuidar da Natureza antes que seja tarde demais?
“Não há, nem pode haver, na verdade, barreiras ao mundo encantado das formas; não há filas para se entrar no seu recinto, que não e de ninguém, que é comum a todos os homens indistintamente. Feliz a humanidade quando todos, sem inibições e iniciados, puderem entrar no seu campo mágico! A iniciação está ao alcance de todos.” disse o grande crítico de arte Mário Pedrosa.
Essas “passagens” são promissoras.
E finalmente a artista apresenta duas séries de fotografias uma sobre Impressão em canvas e outra em papel, ambas com interferências de diferentes materiais recolhidos na aldeia em diferentes momentos de 2021, trazendo para o momento presente a interlocução entre o ontem e o hoje, o ancestral e o contemporâneo, o que é visível e o que só uma alma livre de preconceitos consegue enxergar: “Passagem pelos sentidos” e “Série Barro” mostrando o processo criativo das obras ‘Passagens’ e algumas outras sobre uma cerimônia Pataxó de homenagem à Lua.