Carta de uma viajante 15

São Paulo, 07 de fevereiro de 2021.
  

Sumi, sim, eu sei, e sinto muito por tê-los deixado sem notícias por tanto tempo.

O final de 2020 foi tenso e intenso.

Perdi minha tia querida e madrinha, a maior fã das Cartas de uma viajante que já tive. Ela aguardava sempre ansiosa e orgulhosa da sobrinha e afilhada. Me cobrava quando eu demorava muito para escrever e tinha todas guardadas para poder reler quando desse saudades. Demorei um tempo para conseguir vivenciar o luto e voltar a escrever, sei que ela ficaria feliz.

Logo após a sua passagem eu viajei, apesar da situação limítrofe em que o Brasil se encontrava (e ainda se encontra). Recebi um convite do Arassari Pataxó, uma das lideranças do povo Pataxó, para ir visitar sua aldeia, Barra Velha, no sul da Bahia. Convite irrecusável, responsabilidade imensa e elevada a enésima potência. Conhecer a história de um povo que foi um dos primeiros a ter contato com os portugueses nos idos 1500 e cuidar para não colocar sua saúde em risco. Fiquei literalmente guardada aqui em casa, em Jundiaí, por quinze dias, fiz todos os exames, levei comigo todas as medidas de prevenção, respirei fundo e mergulhei.

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Um mergulho profundo

Na vida. Na minha e na deles.

Na realidade, do outro lado de uma história.

Na força, de um povo que se levanta a todo instante.

Na coragem, de me despir de tudo e renascer outra.

Para entrar em contato com o outro de verdade é preciso se despir de camadas e camadas, de conceitos e preconceitos que vamos acumulando com os anos pelo simples fato de existirmos em sociedade, numa determinada cultura. Sem perceber muitas vezes assumimos como nossos, valores que necessariamente não o são, mas que de tanto vermos refletidos nos outros entendemos que nos pertençam também. Esse despir é um exercício e tanto. É difícil e dói, pois nos coloca em contato com nós mesmos nessa busca do nosso verdadeiro eu. Acredito que só quando nos encontramos é que conseguimos adentrar a realidade do outro sem julgamentos ou convicções e com isso compartilhar, colaborar e somar forças para efetivamente deixar para as próximas gerações um futuro que valha a pena.

Nas viagens que faço conheço costumes completamente diferentes dos meus, eles têm sempre um sentido histórico, arraigado na origem daquele povo, comunidade ou pessoa. É preciso parar para ouvir, entender e respeitar. Não precisamos mudar o outro para amá-lo, mas precisamos respeitá-lo e entende-lo para somarmos nossos conhecimentos, nossas ideias e nossas forças, afinal a luta pela vida é de todos nós.

Cada vez que embarco para uma viagem dessas eu deixo em casa meus costumes e crenças, parto leve, pronta para ouvir e aprender, pronta para sentir e viver essa realidade que é diferente da minha, mas que é tão real quanto. Eu continuo sendo eu, mas temporariamente vivo por inteiro uma vida diferente da minha. Não sei bem explicar como faço isso, apenas faço e é por isso que, quando volto, é como se retornasse à superfície da água quando o oxigênio já estava faltando. Renasço, diferente de quando mergulhei. O renascimento vem seguido de um tempo de reflexão e sedimentação, parte do que vivi se soma a quem eu era e me torna mais forte, mais densa, mais inteira. A outra parte permanece no meu aprendizado e de tempos em tempos me revisita contribuindo para o meu entendimento do mundo.

Em de 2020 desenvolvi os trabalhos com a Aldeia Kaupüna apesar do isolamento social, criei com eles a primeira peça onde homens e mulheres precisam trabalhar juntos para chegar ao resultado final, concebi com Kulikyrda Mehinako um obra que trouxe para uma exposição em São Paulo a reflexão sobre nossas atitudes, e que de São Paulo ganhou o mundo, trouxe um novo sentido para a árvore de Natal, recebi prêmios que vão muito além do design e reconhecem o propósito da Yankatu e todas as relações envolvidas na busca por atingi-lo. Isso tudo só foi possível porque pude contar com muitas mãos, porque há transparência em cada relação, porque a troca é verdadeira e feita com amor, respeito e admiração.

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Agora já estamos em 2021, mudou-se um número, mas isso só não muda nada, o que precisamos mesmo é mudar a nós mesmos, a cada passo, a cada dia, cada vez mais juntos. O ano de 2020 mostrou que não existe distinção de gênero, cor, raça, origem ou classe social. Somos todos iguais, independentemente do barco em que nos encontramos nessa grande navegação pela vida, até porque a qualquer momento uma onda pode entornar nosso barco também. Estamos todos em uma só viagem.

Logo mais apresentarei novos trabalhos, tanto com a aldeia Kaupüna, no Xingu, quanto com a aldeia Barra Velha, na Bahia. Logo mais haverá mais uma exposição de arte na Praça Adolpho Bloch em São Paulo e as penas trabalhadas com delicadeza por Txahamehé Pataxó conectarão Terra e Céu e a passagem do tempo levará camadas e nos ajudará a enxergar, nós mesmos e os outros.

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Hoje tenho também um pedido e um comunicado a fazer. O pedido é que quem quiser continuar recebendo as newsletters da Yankatu precisa me responder com sua autorização, e o comunicado é que as Cartas de uma Viajante ganharão novo formato (surpresa!) e daqui para frente, ao invés de irem por e-mail, serão postadas no Instagram da Yankatu.

Meu obrigada imenso a todos e a cada um de vocês que me acompanham, leem, escutam, enviam mensagens e sorriem comigo.

Um abraço bem apertado, com muito carinho,

 
Maria Fernanda Paes de Barros
Viajante e Idealizadora da Yankatu