URUCUREÁ + ALMA-RAÍZ

Num rompante decidi ir para Alter do Chão. Lembro até hoje, estava na marcenaria, no interior de São Paulo, pedi o computador do Guto emprestado enquanto ele e o David executavam um trabalho onde não podia ajudar. Sentei e em questão de minutos comprei a passagem e reservei a pousada para a semana seguinte, depois fechei os olhos, respirei fundo e me senti aliviada.

No dia seguinte, de volta à São Paulo, passei na Artesol, que é uma organização sem fins lucrativos que atua há quase duas décadas investindo na valorização e promoção do artesanato tradicional brasileiro (vale muito a pena entrar no site deles e entender um pouco mais sobre esse trabalho maravilhoso feito por tantas mãos incríveis). Lá encontrei a Jô (Jossiane Massom profissional incrível e amiga das mais queridas) e conversa vai, conversa vem, comentei que queria começar a pensar para onde iria direcionar meu olhar na próxima coleção. Buscava uma comunidade ou artesão que estivesse precisando desse “novo olhar”, pensava nos trançados pois o Brasil é riquíssimo nessa arte e eu ainda não havia trabalhado com ela.

A Jô apontou para os cestos coloridos da comunidade de Urucureá, me perguntou se eu gostava e começou a contar maravilhas sobre as pessoas e o trabalho. Ela terminou dizendo:

– Só há um problema… é beeeem longe!

– Longe quanto? – eu perguntei.

– No Pará! – ela disse sorrindo.

– Em que lugar do Pará? Eu estou indo para lá semana que vem! – respondi.

– Fica umas duas, três horas de barco de Alter do Chão. – foi a resposta da Jô, que eu ouvi incrédula!

De lá para cá foram três viagens para lá e muitas histórias para compartilhar!

A viagem de barco parte de Alter, vai acompanhando a costa no sentido de Santarém até um determinado ponto onde partimos para a travessia do Tapajós até chegar do outro lado, onde o rio Arapiuns nos espera e um pouco mais adiante, Urucureá.

A primeira vez que fiz a travessia enfrentei um Tapajós que mais parecia um mar bravo, com marolas enoooormes que balançavam o barco e deixaram a mim e ao Edevaldo, o barqueiro, encharcados.

Minha segunda viagem para a região foi em setembro, e bem diferente da primeira vez, peguei um Tapajós mais tranquilo, com céu azul e sol. Só que, no dia seguinte a travessia, perdi a memória e precisei ser “resgatada” pela minha irmã que foi me buscar de avião e me trouxe direto para o hospital em São Paulo. Sempre dou risada quando lembro disso! Deixei todo mundo doidinho, preocupado comigo, que além de não saber o que estava fazendo no Pará e nem que desenvolvia projetos com artesãos (!!!!!!), ainda sofria de perda de memória recente, o que fazia com que precisassem repetir todas as explicações para mim assim que acabavam de falar. Só para não assustar você, o que tive foi um episódio de Amnésia Global Transitória, que não tem uma causa específica e nem deixa sequelas, a não ser aquelas 24 horas das quais jamais lembrarei. Tenho até hoje escrito no caderno de desenhos da coleção a frase que a Lena ditou uma hora que já não aguentava mais repetir a mesma coisa!!!

Da terceira vez que resolvi atravessar o rio era janeiro e fui surpreendida por uma chuva forte que começou de noite e se estendeu madrugada adentro, alcançando o horário que deveríamos sair de Alter com o barco. O melhor a fazer era deixar para outro dia, mas já havia combinado com as meninas que estavam me esperando lá na comunidade e não tinha como avisá-las. Não queria deixa-las na mão novamente, afinal a amnésia havia me retirado a força de lá meses antes. Liguei para o Edevaldo para saber se era seguro fazer a travessia com aquele tempo e ele respondeu que, se eu não fizesse questão de chegar seca e balançar muito, não haveria problema, então seguimos adiante.

A alegria das meninas ao me verem chegar com as peças de madeira com as quais iriam iniciar o tecer da palha valeu cada gota de chuva e marola enfrentada!

Dessa vez não houve nada que me impedisse de voltar a Urucureá diversas vezes durante minha estada na pousada até o dia em que as peças estavam prontas para atravessarem o rio junto comigo a caminho de Alter do Chão. Lembro emocionada das meninas levando as peças para o barco, cada qual carregava a peça que havia tecido com um sorriso estampado no rosto e uma alegria que parecia fazê-las brilhar.

E foi então que vi uma das cenas mais marcantes da minha vida, quando deixamos o rio Arapiuns para adentrar o rio Tapajós, ele nos recebeu como um espelho, liso e calmo como eu nunca havia visto antes. Um arco-íris maravilhoso estava bem ali, na nossa frente, refletido nele, dando a sensação de que não havia começo nem fim, não havia uma linha de horizonte limitando nosso olhar.

Naquele momento eu agradeci, agradeci muito, por muitas coisas e para muita gente, mas agradeci também a mim mesma, por não ter desistido nunca, apesar de todos os obstáculos que apareceram pelo caminho. Foi como se o Tapajós tivesse testado os meus limites, mostrado que meu trabalho é de uma responsabilidade imensa e que eu precisava ter certeza do que e de como eu o estava realizando. Eu passei no teste e a nova coleção recebeu sua benção.

Obrigada Tapajós, obrigada Urucureá, obrigada, obrigada, obrigada. Só posso agradecer pela oportunidade que tive e que pude abraçar. Espero que gostem do resultado dessa primeira etapa concluída que apresentarei em breve!

Com carinho,
Maria Fernanda Paes de Barros