O XINGU, OS MEHINAKU E EU

O que dizer do amor que sinto? Como interpretar as sensações que resolveram não tirar férias e trilham caminhos tão diferentes dos da maioria? Deixo-as fluir, correrem soltas. Faço tantas coisas do que vejo e do que sinto, queria mesmo que todas elas pudessem penetrar nos outros pelos poros, fossem além da beleza e lhes preenchessem a alma de emoções.

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A cada viagem que faço me torno mais humilde, percebo as diferenças por ângulos novos, reaprendo a olhar, entendo significados através do lugar do outro. A vida sem julgamentos é livre, é leve.  Não são apenas línguas e cores diversas, são histórias, costumes, experiências, dores e alegrias, gravadas nos ossos, escritas na pele, correndo pelo sangue. É preciso despir a alma de preconceitos, receber todos os estímulos, desconstruir para poder reconstruir com novo significado, somando o antes e o depois, o meu e o do outro.

Somar, está aí algo que parece simples, mas que precisa ser feito com cuidado para que as identidades não se percam, nem se fundam. A soma não deve subtrair ninguém. Sei que parece estranho falar assim, mas se pararmos para pensar quantas vezes ao somarmos enxergamos apenas o total e nos esquecemos das partes?


Aldeia Kaupüna, dezembro de 2019.

Após mais de oito horas de viagem de carro chegamos à Aldeia Kaupüna. Um cenário de filme nos aguardava. A aldeia havia mudado recentemente de lugar e não houvera tempo de fazer as coberturas de sapé… ocas revestidas com lona branca nos esperavam em meio a um descampado no Alto Xingu.

Olhares desconfiados e sorridentes nos observavam e imagino que nossos olhares estivessem também assim, num misto de alegria e surpresa, uma sensação que acredito que sempre nos acomete quando nos confrontamos com o novo.

Apresentações feitas, redes estendidas na oca, rumamos para o centro da aldeia acompanhadas das doações que havíamos levado. As ocas esvaziavam-se aos poucos, todos dirigiam-se ao nosso encontro. É bonito perceber na aldeia a importância do todo para as partes e das partes para o todo. Sempre que há algo significativo, como receber uma doação por exemplo, todos participam para que entendam seu valor e importância. Transparência, respeito, confiança. Foram também essas palavras que vieram à minha mente durante a moitará, um momento de troca tradicional na cultura indígena da região, que para mim foi apaixonante.

Ali, no Alto Xingu, deitada na rede dentro da oca, ouvindo as conversas sobre o jogo de futebol que iria se realizar no dia seguinte, procurava imaginar a vida de cada um no agora, no antes, no antes do antes, quando o contato com o “estrangeiro” ainda não existia, regredi ao tempo em que nem mesmo os europeus sabiam  ao certo o que existia e como moravam aqueles que habitavam o outro lado do oceano.

Quanto tempo se passou, quanta coisa mudou, influenciamos e fomos influenciados, derrubamos cercas e construímos muros, numa tentativa constante de delimitar nosso espaço e manter nossa identidade. Estar ali é como presenciar um momento importante de livros de história, quando uma civilização encontra outra e é preciso se misturar, mas não se sabe exatamente como ou o quanto essa modificação afetará a realidade a qual se estava acostumado. Quando fazemos esta retrospectiva deixa de parecer fácil chegar em uma aldeia (ou qualquer outro lugar que ainda consiga se preservar um pouco afastado da loucura do mundo de hoje) e dizer como seria melhor fazer isso ou aquilo, qual a melhor maneira de se adaptar as novidades que chegam sem parar. Quem somos nós para julgar a forma como os indígenas reagem e absorvem o novo? Como exigir deles uma postura de alguém que sabe o que fazer diante do inesperado se nem nós sabíamos dos riscos que corríamos com o boom da internet? Eles estão substituindo os momentos em torno da fogueira onde havia contação de histórias e transmissão de conhecimento por momentos em frente à televisão, mas nós também não perdemos os almoços de domingo em família para telas de celular? Talvez possamos mostrar como depois de alguns anos sentimos falta de um contato mais humano, de conversas olho no olho, de sorrisos e lágrimas reais, de toques de mão, talvez não… Afinal quem aqui quando criança ouviu os pais antes de fazer alguma estripulia e aprender na marra que não era tão bom assim?

Enfim, passei uma semana imersa em outra realidade, mas onde, não sei bem como, eu me senti em casa.

Com carinho,

Maria Fernanda Paes de Barros